Em tempos de polarização e de um mercado volátil, líderes precisam de autocuidado e autorrealização para cultivar a resiliência, manter a serenidade no ambiente de trabalho e inspirar
Nos últimos três anos, a sociedade moderna passou pela maior crise de sua história. E todas as adversidades que nos foram apresentadas neste período transformaram o mundo. A vida no planeta Terra é outra. Esse é o entendimento da chanceler federal da Alemanha, Angela Merkel, do escritor israelense Yuval Harari e do sociólogo italiano Domenico de Mais, apenas para citar algumas personalidades influentes do nosso tempo.
Desembarcamos num mundo onde a consciência social das lideranças públicas se sobressaiu. Se em outras pestes os chefes de governo que isolaram os doentes em prol da economia foram bem avaliados, com o Coronavírus foi diferente. Quem tratou de preservar vidas ganhou o respeito e a aprovação do público.
E é consenso que o colapso vivido por nossa civilização atingiu em cheio as empresas, que são o microcosmo da sociedade. E para garantir a sobrevivência da massa - nos termos da saúde física e mental - diante do caos, as lideranças tiveram um papel preponderante, assim como os chefes de Estado. E o desafio para elas apenas começou. A empatia deixou de ser apenas uma palavra bonita no dicionário para ser vivida na prática no dia a dia das organizações.
O líder contemporâneo precisa ser dotado da faculdade de compreender emocionalmente o outro, mesmo quando a convivência se dá por meio da tela do computador. Acolher e influenciar positivamente a equipe é algo instigante no trabalho remoto, que se tornou uma realidade. E, além de exercer a escuta ativa mesmo nos encontros online, as lideranças contemporâneas encaram outro desafio, na opinião do psicólogo, coach e professor, Reinaldo Paiva.
“Os líderes precisam lidar com colaboradores de gerações e modelos mentais diferentes e entender e respeitar os anseios de cada um. Conviver bem com jovens aprendizes, profissionais seniors e pessoas com mais de 60 anos, no mesmo ambiente de trabalho, já é um desafio para as lideranças. E agora eles precisam estar atentos ainda para o movimento quiet quitting, que em português pode ser compreendido como "demissão silenciosa". Ele estimula uma reflexão, sobretudo para as gerações mais novas. "Trabalho não é sua vida" e "seu valor não é definido pela sua produção" são duas frases que resumem as diretrizes desse movimento cuja mensagem principal é a necessidade de haver equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal do profissional”, afirma Paiva.
E cabe aos líderes conseguir fazer essa leitura, de como está a satisfação pessoal dos liderados mesmo quando eles não estão presencialmente no escritório. “O formato híbrido era um padrão na área de TI e que se expandiu para outros setores. Mas como manter a produtividade da equipe sem estar no escritório? Como controlar as pessoas em diferentes lugares?”, questiona Paiva.
Para o psicólogo, entre as provocações para as lideranças em 2023 estão ainda aprender a dar feedbacks assertivos e monitorar o trabalho num cenário de polarização política no mundo e, inclusive, no Brasil. “São idades, mentalidades, classes sociais diferentes disputando o mesmo espaço político. Essa disparidade de valores e opiniões chega nas empresas e esse fator está criando problemas. E para lidar com pensamentos políticos diversos, os líderes terão que manter e transmitir a serenidade que o momento exige. E para isso, terão que deixar o próprio posicionamento político de lado e focar na performance”, orienta o psicólogo.
Ele acrescenta que o que se vê nas empresas é pressão de grupos de funcionários retaliando as lideranças por questões políticas e vice-versa. “Os posicionamentos políticos arraigados podem criar problemas adicionais nas empresas. E, para conviver melhor com essa situação, as lideranças precisam amadurecer como pessoas e cultivar ainda mais a resiliência, que tem sido tão importante nos últimos três anos. É necessário ter muita resiliência para lidar com modelos mentais diferentes em tempos de confrontos de ideologias”, salienta Reinaldo Paiva.
Os efeitos colaterais da crise devem perdurar em 2023 e os líderes terão que enfrentar um mercado em recessão no mundo todo. Sabendo disso de antemão, as lideranças terão que aprender a monitorar o trabalho, mas serem mais flexíveis com os resultados e deixar o enrijecimento de lado, na opinião do psicólogo.
Além disso, os líderes precisam cuidar mais de si, da sua saúde física e bem-estar emocional para suportar a pressão e conseguir trabalhar bem com públicos diversos: colaboradores, fornecedores, mercado e acionistas. “Eles terão que construir uma fortaleza psicológica para se blindar de toda a tensão que está no ar. Esse clima foi instalado com a política e acaba afetando os negócios. É fundamental que as pessoas que ocupam papel de liderança compreenderem que precisam de ajuda para ter paz interior e conseguir lidar com esse momento tumultuado no mundo”, pontua Paiva.
“Ser gente não é tarefa simples. Gente se faz. Não nasce pronta. Gente se constrói, se torna, é uma tarefa que não acaba nunca. É um projeto mais que uma conclusão; uma jornada mais que um destino”. A reflexão de Reinaldo Paiva é uma metáfora que aponta também para a transformação do perfil das lideranças na contemporaneidade.
Para aguentar a pressão de sentar-se na cadeira que representa o poder é preciso dar sentido à existência. “Como seres humanos, então, não basta ter vida, é preciso se inventar, se afirmar, reconhecer e ser reconhecido. Mergulhamos num mundo dado e forças sociais operam para nos formar, dirigir e enquadrar. O véu do “ser levado por” cai, e ganhamos a “direção, o comando de nosso destino”. Assim e aqui começa a verdadeira jornada da individuação como disse o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, da autorrealização”, argumenta Paiva.
Ele explica que quem elevou o termo autorrealização ao status que tem hoje foi o psicólogo norte-americano, Abraham Maslow, criador da Pirâmide de Maslow, que caracteriza as necessidades dos seres humanos e as categoriza em uma ordem hierárquica. São essas necessidades que desempenham um papel muito importante na motivação das pessoas. Na figura a seguir você pode observar essas categorias resumidamente, escalonadas numa pirâmide:
As necessidades da parte mais inferior da pirâmide – fisiológicas e de segurança - são aquelas que sustentam a vida. Elas estão mais relacionadas ao bom funcionamento do organismo e garantem a sobrevivência. Em suma, são responsáveis pela sustentação vital. Já as demais necessidades, seguindo a escala ascendente na pirâmide – Relacionamento, Estima e Auto realização - são de natureza mais complexa. Ativam, disparam e são afetadas por vivências mais psicológicas, emocionais, sociais e existenciais.
Reinaldo Paiva ressalta que, para se autorrealizar e desfrutar de todo o potencial humano disponível, as pessoas teriam que realizar, frequentemente, em algum nível, todas as necessidades dessas categorias. “Maslow indica que a auto realização só é possível quando as necessidades dos níveis inferiores estão relativamente satisfeitas. As hierarquias podem ser compreendidas em termos de necessidades de segurança, necessidades de estímulo e necessidades de posicionamento no mundo”.
E para que todas essas necessidades sejam supridas, Reinaldo Paiva sugere que as lideranças adotem, no seu estilo de vida, os princípios da psicologia positiva, que foca na satisfação e bem-estar dos indivíduos.
O modelo, que deve ser aplicado na vida pessoal e na rotina das empresas, foi desenvolvido por Tal Ben Shahar e também é conhecido como “teoria do bem-estar”. “A intenção é estimular as pessoas a encontrarem a felicidade, que não é um estado natural, mas uma busca diária. A felicidade autêntica é trabalhosa”, reflete Paiva.
Na visão dele, a felicidade é produto de diversos fatores presentes no método S.P.I.R.E, desenvolvido por Shahar. Cada letra do termo se refere a uma peça do quebra cabeça que é a felicidade. São eles:
S – Spiritual (bem-estar espiritual): as pessoas que encontram seu propósito e norteiam suas ações a partir desse valor relatam ter mais controle sobre a vida. É que elas possuem uma razão para viver.
P – Physical (bem-estar físico): já diz a máxima “mens sana in corpore sano”, que traduz a ligação entre a saúde mental e física. Para Paiva, nosso corpo é nossa última morada e, por essa razão, temos que cuidar com amor da “carcaça” que irá nos abrigar durante toda a existência. Nosso corpo é um tempo sagrado que deve ser conservado com movimento (exercícios físicos), alimentação saudável e descanso (sono).
I – Intellectual (bem-estar intelectual): a letra de rock brasileiro “a gente não quer só comida/ a gente quer comida/ diversão e arte”, dos Titãs, explica com profundidade a importância da fome do saber para encontrar a felicidade genuína. Alimentar a mente, cuidar do intelecto a partir de leituras, pesquisas, contato com a arte, estudos, diálogos e debates ampliam nossa visão de mundo.
R – Relational (bem-estar ‘relacional’): As relações positivas também interferem na sensação de bem-estar e felicidade. Então, o primeiro passo é deixar de lado o contato com pessoas tóxicas.
E – Emotional (bem-estar emocional): aumentar as emoções positivas e encontrar na resiliência uma fortaleza para lidar com as adversidades.
A última letra do método S.P.I.R.E. deve ser levada a sério pelas lideranças porque está relacionada ao cuidado com a própria saúde mental e que influencia na vida dos liderados.
“As empresas precisam investir em relações inspiradoras, lideranças motivacionais, que são sinérgicas. Na vida e no trabalho, é importante trazer emoções positivas, generosidade, gratidão e entusiasmo para o dia a dia. tudo isso aumenta o ânimo da existência dos colaboradores. Há uma relação direta entre satisfação e produtividade”, finaliza Paiva.