Estratégia: Um jogo de múltiplos jogadores

16/11/2016
Estratégia: Um jogo de múltiplos jogadores | JValério

“Pôquer ... não xadrez, Sr. Spock” (Capitão Kirk)

A estratégia empresarial ou pública é geralmente associada a um processo de tomada de decisão racional ou pensada na forma de um jogo, numa analogia com o xadrez – uma partida entre dois jogadores, com todas as informações disponíveis. O mundo real é, no entanto, bem mais complexo. Embora as empresas tentem tomar as decisões racionalmente, muitas vezes não levam em conta outros atores ou jogadores, como a competição, o governo, os fornecedores, os clientes, os acionistas e os diversos departamentos da organização. Outro aspecto importante é que as informações são assimétricas, incompletas e não estão disponíveis para todos os jogadores. Por outro lado, existem informações sobrando. Neste artigo, vamos analisar a estratégia como uma interação ou um jogo, com vários jogadores e informações incompletas. Assim, ela se assemelha mais a um jogo de pôquer do que ao xadrez. Só que ao contrário do pôquer, em que as fichas são mantidas durante o jogo, no mundo organizacional a estratégia pode criar fichas (jogo de soma positiva) ou destruí-las (jogo de soma negativa). Teoria da Decisão e Teoria dos Jogos A ciência da decisão tem duas teorias fundamentais. A Teoria da Decisão explica como os seres humanos tomam suas decisões e como devemos analisar uma situação antes de fazer escolhas. A Teoria dos Jogos analisa como a decisão de dois ou mais atores, chamados de jogadores, pode gerar interações inesperadas e a dinâmica que resulta dessas escolhas. Ambas surgiram a partir da matemática e foram adotadas por diversas ciências, como a biologia, economia, engenharia, direito e administração. Apesar de muito úteis, ainda são pouco difundidas no Brasil e, mesmo sendo teorias matemáticas, não exigem muita sofisticação para entender seus principais conceitos e ensinamentos. A teoria dos jogos será mais explorada neste artigo, pois se contrapõe à teoria da decisão, quando considera a escolha como um ato exercido a pelo menos quatro mãos, em vez de um exercício solitário. A teoria dos jogos começou como um modelo matemático, mas ao longo do tempo acabou se tornando uma maneira de modelar, de forma simples, o comportamento humano. Não Jogue as Cartas, Jogue os Jogadores Uma das primeiras definições, que chama a atenção na teoria dos jogos, é a dos jogos estratégicos e extensivos. Jogos estratégicos são aqueles que têm apenas um lance – a compra de um maquinário, que não se repete, uma consultoria sem revenda ou uma entrevista de emprego. Os jogos extensivos têm diversos lances – uma relação de compra frequente, que se repete diversas vezes, um serviço com várias revendas ou uma carreira profissional. A miopia da maior parte das pessoas é achar que os jogos do mundo administrativo são estratégicos, ou seja, não se repetem. Na verdade, a maior parte das nossas relações são jogos extensivos, com muitas rodadas repetitivas. Nesse caso, a recomendação de como proceder segue a regra mais importante do pôquer. Se as pessoas não forem esquizofrênicas, seu padrão de comportamento será constante e, portanto, se comportarão no futuro como se comportaram no passado. Sendo assim, é melhor não jogar as cartas, e sim os jogadores. Isso significa que se alguém é avesso ao risco, terá sempre esse comportamento em suas decisões futuras. Quando gosta de buscar consenso e analisar com cuidado as possibilidades, antes de tomar uma decisão, também se comportará sempre dessa maneira. Ou seja, como o padrão de comportamento das pessoas não se altera, é possível prever razoavelmente como elas se comportarão no futuro. E isso é muito bom, pois de outra forma a vida em sociedade seria bem mais difícil. Jogos e Comportamento Humano Segundo a teoria, uns poucos jogos representam muitas situações. Isso acontece porque existe um conflito, na sociedade humana, entre as vantagens de cooperar e competir. Assim, três jogos são capazes de explicar boa parte do comportamento humano: um jogo de cooperação, outro de competição e um terceiro, que coloca as duas forças em contraposição. As vantagens da cooperação se devem ao fato de os seres humanos terem evoluído de caçadores coletivos, assim como os lobos, hienas, golfinhos e chimpanzés. Eles se unem para exercer atividades perigosas em grupos (de 50 a 500 indivíduos), antigamente denominados “tribos”, e hoje, “organizações”. A caça precisa ser organizada e requer diferentes tarefas. Para organizar essas escolhas, acabam surgindo hierarquias, como em outras espécies animais de caçadores coletivos. Mas, a reprodução humana é sexuada e, portanto, competitiva, criando claras vantagens para a competição, na medida em que os indivíduos tentam selecionar os melhores parceiros. Homens e mulheres têm vantagens individuais em serem mais atraentes para o sexo oposto e isto gera competição, que é inata e necessária. O Jogo da Inovação O principal jogo da teoria dos jogos coloca em contraposição as duas forças, de cooperação e competição. Esse jogo é usualmente chamado de “o dilema do prisioneiro”, mas neste artigo vamos analisar uma de suas versões mais aplicável ao mundo corporativo – o jogo da inovação. Imagine duas empresas que disputam um mercado de seis unidades de venda. Cada uma delas vende três unidades para esse mercado. Surge a possibilidade de uma inovação, que pode custar o equivalente a duas unidades de venda. Se apenas uma das empresas fizer essa inovação, ela controlará todo o mercado, ficando com as seis unidades de venda, mas terá gasto duas unidades. Portanto, seu resultado será de quatro unidades. No entanto, se os dois jogadores inovarem, eles continuarão a dividir o mercado em duas partes iguais de três unidades, com cada um gastando duas unidades para inovar seu resultado. O Efeito da Dama de Copas Esse fenômeno é chamado de coevolução, ou seja, a evolução de uma empresa força a evolução de outra. As organizações não evoluem sozinhas, mas sim umas com as outras. O fenômeno foi descrito pela primeira vez na Biologia, na década de 1970, e chamado de “efeito da dama de copas”, em homenagem ao trecho do livro “Alice no país das maravilhas”, em que Alice se encontra com a Rainha de Copas e esta lhe diz: “aqui, quanto mais você corre, mais você fica no mesmo lugar”. Essa passagem foi usada como metáfora, para mostrar que quando os organismos evoluem, eles forçam outros em seu ambiente a evoluírem juntos. O nível de competição aumenta a chamada pressão evolutiva. Rapidamente, essa metáfora foi absorvida pela economia e a administração, pois explicava bem como a inovação acontece e como as empresas gastam milhões de dólares para manter-se no mesmo patamar de competição. Há muitos exemplos desses duopólios coevolutivos, como a Coca-Cola e Pepsi, Microsoft e Apple, Airbus e Boeing, Walmart e Carrefour. Essas empresas vivem presas num sistema de decisão mais bem explicado por um jogo, do que por uma situação isolada.

Esse sistema também pode ser aplicado em países e pessoas, como a coevolução entre URSS e EUA durante a guerra fria e, agora, entre EUA e China. No nível pessoal, podemos citar a necessidade de uma pós-graduação, rara nos anos 60 e 70, que se tornou quase obrigatória nas últimas décadas. Na medida em que mais pessoas concluíam a pós-graduação, maior era a pressão competitiva ou evolutiva.

O Jogo das Cadeias Produtivas Ainda assim, o modelo do jogo da inovação envolve dois jogadores. No mundo real, existem outras formas desse jogo e variantes com mais de dois jogadores. O mais comum é o “jogo das cadeias produtivas”, em que temos o mesmo sendo jogado em diversos níveis de uma cadeia produtiva. E mais do que isso, a evolução em um dos elos da cadeia pode forçar uma evolução de toda ela, para frente e para trás. Dessa forma, uma cadeia produtiva saudável é um longo jogo de coevolução, em que a evolução de um dos membros pode forçar a de todos os outros. O paralelo com um ecossistema é bastante óbvio. Curiosamente, a maior parte das empresas, em vez de olhar para suas cadeias produtivas e pensar de forma integrada, raciocina dentro de si mesma e raramente considera as interações. Mas existe outra forma de ver o jogo das cadeias produtivas – a de um jogo de pôquer, em que as fichas são criadas à medida que as pessoas jogam, ou melhor, agregam valor. Num jogo desses, ninguém quer parar de jogar e todos se transformam em parceiros. O problema é quando um dos jogadores para de ganhar dinheiro e quer interromper a cadeia, ou na analogia, “sair da mesa”. Nesse caso, surge um misto de cooperação e competição – chamado de coopetição – na verdade, uma forma natural de vida dos seres humanos, já que existem vantagens tanto em cooperar, quanto em competir. A Tragédia dos Comuns Outra forma do jogo da inovação é “a tragédia dos comuns”, tradução quase literal de The tragedy of the commons. Ela acontece quando diversos jogadores exploram um recurso comum, seja um mercado ou uma fonte de matéria-prima, esgotando-o, o que acaba gerando uma “tragédia”. Essa versão se originou da análise dos campos de pasto, comuns a diversos pastores na Inglaterra. Um pastor poderia se beneficiar individualmente, colocando mais ovelhas no pasto comum, mas se todos o fizessem ao mesmo tempo, poderia resultar na degradação do pasto e perda de todos os rebanhos. Dessa forma, embora houvesse o incentivo para serem egoístas, se todos pensassem apenas em si mesmos, o resultado seria pior do que se nenhum deles fosse egoísta. Essa versão do jogo tem sido usada para descrever os problemas do aquecimento global, desmatamento, pesca em excesso e outras questões ambientais. Porém, também pode ser prescrita para um mercado onde várias empresas começam a lançar muitos produtos ou a baixar preços, para ganhar volume. Imaginemos uma situação em que vários competidores atuam num mercado sensível a preços, e um deles resolve baixar preços e margens para ganhar volume. Se ele faz isso sozinho, pode obter vantagens para sua empresa, sem prejudicar muito as vendas de todos os competidores, mas se os outros decidem seguir o exemplo e também reduzem seus preços e margens, pode haver uma destruição de valor do mercado. Essa situação ocorre com frequência em mercados como os do varejo, telecomunicações e serviços bancários. Na verdade, quanto maior o número de concorrentes, maior será a sensibilidade aos preços e a chance de que isso ocorra. Mais uma vez, a decisão não é um exercício solitário, e sim um jogo. O Problema da Barganha Para finalizar, vamos explorar um segundo tipo de jogo, bastante comum no mundo das organizações, que exige trocas ou negociações. Nele, pode haver competição e cooperação, pois os dois lados têm vantagens individuais e, embora possa ser jogado por dois lados, é muitas vezes um jogo de múltiplos jogadores. Por mais de um século e meio, a economia imaginou que esse teria de ser um jogo de soma zero, ou seja, um tipo de situação que não poderia criar valor. Isso se devia à percepção equivocada de que os objetos deveriam ter o mesmo valor para todos os observadores. Acontece que os objetos, sejam eles físicos ou intangíveis, podem ter valores assimétricos para observadores diferentes e isso permite que as trocas e negociações acabem gerando valor para ambos os jogadores. Existem diversos exemplos de assimetria, como a camisa de um time, um batom, um chimarrão ou um carrinho de bombeiro. Todos esses objetos podem valer muito para um indivíduo e pouco para outro. O valor não está no objeto, mas sim na interação entre ele e o observador. A economia clássica, de Adam Smith, Karl Marx e David Ricardo, não conseguia perceber isso, pois para ela o valor de um objeto era fixo – o número de homens-hora acumulado. Dessa forma, toda troca teria de ser um jogo de soma zero. Era impossível explicar a razão da existência do comércio e como aconteciam as negociações sem que um lado explorasse o outro. Isso levou Karl Marx a criar o conceito da mais valia numa troca. Hoje se sabe que é um conceito falso, pois na verdade os valores dos objetos são assimétricos, e a mais valia não existe. Boa parte da teoria marxista se tornou inválida com o desenvolvimento da teoria dos jogos. O exemplo mais forte talvez seja o da camisa de um time de futebol. Para a economia clássica, ela deveria ter o mesmo valor para qualquer observador, independente do time para o qual ele torce. No mundo real, os valores atribuídos são diferentes, pois o torcedor do time dá mais valor para a camisa. Se for um time que gera paixões e polêmicas, o valor será ainda mais diverso. No final do século 19, os marginalistas já tinham abandonado esse conceito, mas foi somente com a Teoria dos Jogos, e em particular num artigo escrito por Jon Nash em 1950, que ficou claro um novo paradigma. Em The Bargaining Problem, Nash mostrou que o fato de os objetos terem valores assimétricos pode criar uma situação em que a troca ou barganha resulte em ganhos para ambos os lados. Assim, surgiu a economia neoclássica. Imagine uma situação em que dois diretores tenham que fazer um planejamento estratégico e decidir como utilizar uma determinada verba. Inicialmente, a situação pode ser vista como um jogo de soma zero, pois a verba alocada é fixa e limitada. Mas, os projetos para os quais terão de alocar os recursos não têm o mesmo valor para ambos, e sim valores assimétricos em termos de utilidade ou importância. Os projetos que são importantes para os dois diretores devem ser priorizados na decisão, pois ambos sinalizam ganhos, mas aqueles com importância apenas para um deles deverão ser descartados, a menos que exista um acordo entre os dois para incluir um projeto importante para cada um. Dessa forma, o processo de construção do orçamento se transforma numa negociação típica do problema da barganha. Imagine agora o mesmo processo com três ou mais diretores, algo bem mais complexo, mas cada vez mais parecido com um jogo e uma negociação, do que com um processo racional. Nesse caso, surge um aspecto típico do pôquer – as agendas ocultas e os jogos de poder, como a formação de coalisões e de base de poder, o voto de minerva e a otimização de uma divisão da empresa em detrimento do todo. Nesse caso, você deve jogar os jogadores e não as cartas. Conclusões Neste artigo, exploramos alguns aspectos da estratégia como um jogo de múltiplos jogadores. Tanto em sua concepção, quanto na execução, a estratégia se assemelha mais a um jogo do que a um processo racional de decisão. A analogia do pôquer é melhor do que a do xadrez, devido à multiplicidade de jogadores e à existência de uma informação incompleta. A teoria central que explica esse aspecto da estratégia é a Teoria dos Jogos, que analisa de forma matemática o comportamento humano e a contradição existente entre as vantagens de cooperar e competir. Exploramos em particular dois jogos – da inovação e do problema da barganha. O primeiro explica como se dá a coevolução das organizações e o segundo, como acontecem os processos de negociação. Como conclusão final, lembramos que não estamos sozinhos e conhecemos os outros jogadores. Eles não são nossos inimigos e, nem necessariamente, nossos amigos, mas apenas seres humanos com seus próprios interesses e contradições. Fonte: FDC
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